A guerra fria entre as gigantes de tecnologia já dura sete anos — e parece estar longe de acabar
Não faz muito tempo que Mark Zuckerberg, fundador do Facebook, cravou a Apple como a sua maior concorrente. Uma afirmação que pode soar estranha visto que (pelo menos ainda) a empresa liderada por Tim Cook não tem uma rede social. O motivo para a concorrência, segundo Zuckerberg, é simples: “As novas políticas de privacidade da Apple são abusivas e vão atrapalhar diretamente os negócios do Facebook.”
No ano passado, a Apple anunciou que, em breve, ainda sem data confirmada, os aplicativos que rastreiam os usuários e compartilham seus dados com outras companhias precisarão ter uma permissão explicíta por parte do indivíduo.
A função, chamada de “App Tracking Transparency”, fará com que uma notificação seja enviada ao usuário para que ele permita ou não o rastreamento por aplicativos e sites de outras empresas. A expectativa da Apple, então, é de que os usuários não aceitem e, assim, deixem de compartilhar seus dados com a maioria dos aplicativos.
Foi assim que a briga ficou mais forte.
Disputa começou em 2014
Tudo começou, na verdade, em 2014, quando Cook criticou, publicamente, o modelo de negócios do Facebook. À época, o CEO afirmou que, “se as companhias estão fazendo dinheiro coletando dados pessoais dos usuários, era preciso se preocupar”. Zuckerbert, então, disse que a afirmação era “ridícula” e que os produtos da Apple eram “caros demais”.
Em outubro de 2020, a briga ganhou novos contornos. Durante uma conversa com investidores, Zuckerberg afirmou que “as ações planejadas por companhias como a Apple poderiam ter um impacto significativo e negativo em pequenos negócios e também no Facebook, além de atrapalhar a recuperação econômica em 2021”.
Dois meses depois, o tom subiu, e o bilionário emitiu um comunicado em diversos jornais americanos acusando a Apple de estar roubando a internet pública.
Mexendo com o bolso de Zuckerberg
De fato, a decisão da Apple pode acabar impactando a receita do Facebook.
A rede social fechou o ano de 2020 com uma receita de US$ 28 bilhões, com um crescimento de 23,8% em relação a 2019. O número de usuários ativos mensais (MAU, na sigla em inglês) também cresceu e alcançou a marca de 2,8 bilhões de pessoas. A receita total de publicadade do quarto trimestre do ano passado foi de US$ 21,7 bilhões.
Sem poder acessar os dados dos bilhões de usuários para personalizar suas campanhas, esse valor deve cair.
Quem está no controle
Novamente em uma ligação com investidores, Zuckerberg afirmou que “enxerga a Apple como um dos maiores concorrentes” do Facebook.
“Estamos vendo que os negócios da Apple dependem mais e mais de ganhar uma parcela em aplicativos e serviços que estão contra nós e outros desenvolvedores. Então, a Apple tem todo o incentivo para usar sua posição de plataforma dominante para interferir em como os nossos aplicativos e outros apps funcionam, o que eles fazem com frequência para beneficiar os próprios apps. E isso impacta no crescimento de diversos negócios no mundo todo”, disse.
Em resposta, a Apple afirmou que “tem a responsabilidade de dar transparência e poder de escolha a seus usuários acerca de como seus dados pessoais são utilizados”. Cook não ficou quieto: segundo o CEO da Apple, o modelo de negócios do Facebook “é desenhado para lucrar em cima da desinformação”.
“A tecnologia não precisa de uma grande quantidade de dados pessoais, agrupados em dezenas de sites e aplicativos, para ter sucesso”, disse, em um discurso na Conferência Europeia de Computadores, Privacidade e Proteção de Dados, em janeiro deste ano. “A publicidade existiu e prosperou por décadas sem ela. E estamos aqui hoje porque o caminho de menor resistência raramente é o caminho da sabedoria.”
No mesmo discurso, sem citar diretamente a rede social, Cook afirmou que “não podemos fechar os olhos para uma teoria da tecnologia que diz que todo engajamento é um bom engajamento”.
“Em um momento de desinformação galopante e teorias de conspiração alimentadas por algoritmos, não podemos mais fechar os olhos para uma teoria da tecnologia que diz que todo engajamento é um bom engajamento — quanto mais tempo, melhor — e tudo com o objetivo de coletar tantos dados quanto possível”, continuou. “Já passou da hora de fingir que essa abordagem não tem um custo —de polarização, de perda de confiança e, sim, de violência.”
Em seu perfil no Twitter, Cook também afirmou que “os usuários devem ter o poder de escolha sobre os dados que são coletados sobre eles e como eles são utilizados”. “O Facebook pode continuar a rastrear seus usuários como fazia antes. O App Tracking Transparency, que estará disponível no iOS 14, irá apenas fazer com que o app peça permissão antes”, completou. Junto ao tuíte, Cook colocou uma imagem de como a notificação deve aparecer uma vez que a ferramenta for implementada (veja abaixo).
Essa, no entanto, não foi a primeira decisão da Apple em relação à privacidade de seus usuários. No iOS 13, a companhia começou a pedir para que os aplicativos permitissem que os usuários escolhessem se queriam ou não compartilhar para sempre sua localização ou somente durante o uso do app.
Em uma carta aberta sobre privacidade publicada em novembro, a Apple acusou o Facebook de coletar “o máximo de dados possível enquanto desrespeita a privacidade dos usuários”, enquanto o Facebook acusou a Apple de abusar de sua dominância no mercado em detrimento de outras companhias, dando preferência para a sua própria coleta de dados.
No dia 28 de janeiro, o site “The Information” afirmou que o Facebook está preparando uma ação antitruste contra as alterações no sistema operacional dos dispositivos da Apple. De acordo com o site, a rede social já vem preparando o caso por meses ao lado de especialistas externos e alega “que a Apple está abusando de seu poder de mercado ao forçar desenvolvedores terceiros, incluindo o Facebook, a seguir uma série de regras que os apps da Apple não precisam seguir”.
Concentração de mercado
Para Fabro Steibel, diretor-executivo do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio (ITS Rio), a situação toda se resume a duas palavras: disputa concorrencial. “A disputa da Apple e do Facebook está em saber quem é que vai ser o próximo super app, que são aquelas plataformas nas quais outros apps podem participar. É a ideia de que, se você tiver aquele aplicativo a que os outros têm de se associar, você tem sua força garantida no mercado”, diz.
O embate entre as duas gigantes tem uma importância enorme em um tempo no qual as discussões sobre privacidade estão cada vez mais quentes.
Pense em um jogo de xadrez, mais especificamente em um bispo, que tem como principal função a defesa dos peões ao centro e busca atacar quem está em sua diagonal. Para Steibel, a privacidade entra na briga quase como a peça em questão. “O que é mais rentável hoje na questão de superapp é a identidade do usuário, é você saber quem está fazendo o que com qual informação. Então, ter acesso ao cliente do outro e ter acesso ao que o outro está fazendo é essencial. O Facebook já tem isso”, diz.
Steibel diz que a tentativa de ser um super app, tanto do lado do Facebook quanto da Apple, tem um calcanhar de Aquiles em comum: a privacidade e o compartilhamento de dados. “As duas estão tentando fazer acordos comerciais que vão muito além do que pode ser feito para identificar o usuário. Eles estão argumentando que a identificação do usuário é necessária para a utilização do serviço. Mas que tipo de serviço? O Facebook provê o serviço de rede social, mas também de anúncio. E a mesma coisa deve acontecer com a Apple”, afirma.
Ambas as empresas são alvo de um processo antitruste nos Estados Unidos que investiga práticas anticompetitivas das chamadas “big techs”, como o Facebook, a Apple, a Amazon e o Google. Para Steibel, reguladores europeus e americanos estão dispostos a penalizar as empresas.
“A questão aqui não é se você prefere o Facebook ou a Apple, mas sim que ambas estão fazendo uma concentração vertical de mercado que pode deixar outras camadas da internet de fora. É uma internet fechada, mas ambas controlam quem entra e quem sai. E elas querem muito que as pessoas compartilhem seus dados”, diz.
“O que o Facebook quer? O Facebook quer impedir o avanço da Apple em uma área que ele domina [a de coleta de dados]. E o que a Apple quer? Ela quer ser ainda melhor que o Facebook. E o que o regulador quer? Que isso não aconteça”, reflete.
Com quantas maçãs se faz uma guerra? Para o Facebook, bastou apenas uma.