Instituído há poucas semanas pela Circular nº 4.027, o Sistema de Pagamentos Instantâneos (SPI) desenvolvido pelo Banco Central (BC) deve entrar em funcionamento em novembro deste ano. Conhecido como PIX, o novo sistema dá mais um passo nas metas estabelecidas pela instituição, de promover mais “inclusão, competitividade, transparência e educação” no mercado financeiro.
Até agora, cerca de 980 instituições financeiras aderiram ao programa dentro do prazo de inscrição. São desde bancos tradicionais, como Caixa, Banco do Brasil, Bradesco, Itaú e Santander, a instituições nascidas no meio digital, como Inter, NuBank e PagSeguro, além de adquirentes, como Cielo, Rede e Stone.
Entre outras coisas, o sistema vai permitir a realização de transações financeiras no âmbito digital, durante as 24 horas do dia, sete dias por semana, ao mesmo tempo em que submete todas as instituições financeiras — de grandes bancos tradicionais a fintechs e redes do varejo — às mesmas regras.
Por isso, o PIX tem sido visto pelo mercado como um elemento de democratização dos recursos financeiros e descentralização do complexo sistema bancário brasileiro. “Nesse cenário, sai ganhando quem oferecer a melhor experiência para o cliente”, afirma Raul Moreira, diretor executivo de TI e Open Banking do Banco Original.
Quando o WhatsApp anunciou sua ferramenta de transferências bancárias por meio de sua plataforma, caminhando para se tornar o “super app” do ocidente, nos moldes em que operam Alibaba e WeChat na Ásia, rapidamente o BC e o Cade suspenderam a iniciativa e obrigaram a gigante das redes sociais a se comprometer com a regulamentação do PIX.
Através de sua assessoria de imprensa, o WhatsApp afirmou “apoio a um modelo pró-competitivo e aberto para pagamentos e também seu compromisso em fornecer pagamentos via PIX tão logo o sistema esteja disponível”. Ainda no comunicado, a empresa disse que, em reunião, “o BC expressou intenção de encontrar um caminho com a Visa e a Mastercard para que o serviço prossiga, além de envolver outras autoridades para resolver quaisquer dúvidas pendentes”.
O professor de marketing digital e empreendedorismo do Insper, Renato Mendes, destaca que esse processo poderia ser mais conflituoso, mas que a instituição tem surpreendido pela equidade de exigências às empresas do setor financeiro. “O BC tem conduzido essa missão com maestria, porque o lobby dos grandes bancos é pesado. Mas o BC está trazendo todo mundo para a mesa, sempre sinalizando o que vai acontecer nos próximos meses”, explica.
Diretor de Inovação da Sinqia, uma das grandes intermediárias nesse processo — que vai fornecer interface para bancos que não pretendem operar de maneira direta no PIX —, Leo Monte acredita que a grande transformação proporcionada é justamente o acesso aos ‘desbancarizados’. De acordo com o último levantamento do Instituto Locomotiva, mais de 45 milhões de pessoas vivem sem acesso a instituições financeiras no Brasil.
“O nosso sistema financeiro é o mais organizado e avançado do mundo, mas, ainda assim, muitos ficam de fora”, diz Monte. Para os especialistas, as novas possibilidades proporcionadas pelo sistema vão revolucionar a forma como brasileiros lidam com o dinheiro e, num longo prazo, até mesmo colocar a moeda física em extinção. Na verdade, o sistema só acelera um movimento que já está em curso.
O fim do papel moeda?
De acordo com uma pesquisa da Febraban, publicada no mês passado, as transações financeiras feitas por celular no Brasil cresceram 41% em 2019, passando de 3,2 bilhões para 4,5 bilhões de operações em plataformas digitais. Com o dinheiro migrando para o universo online, analistas acreditam que o fim da moeda como conhecemos hoje está cada vez mais próximo.
Outra das principais vantagens do PIX, na avaliação de Moreira, do banco Original, é a contribuição para o registro das atividades econômicas — um desafio para o país onde 40% dos trabalhadores estão em situação informal, de acordo com o IBGE. “O papel moeda é um item a ser combatido na sociedade. Não só é custoso, como gera grande margem para a informalidade”, diz o especialista.
As transações em papel moeda, explicam os especialistas, geralmente acontecem sem registro, muitas vezes sem a emissão de nota fiscal. Da mesma forma, trabalhadores que recebem em dinheiro por “bicos” e não operam como empreendedores, não informam às autoridades econômicas sobre seus rendimentos – o que também impede o governo de recolher mais impostos. Assim, aumenta a fatia de transações realizadas na chamada “economia subterrânea” ou operações “frias”.
O diretor da Sinqia cita como exemplo os trabalhadores que prestam serviços para aplicativos de transporte e faxina, ou mesmo os negativados que driblam as barreiras do sistema financeiro por meios digitais para permanecer economicamente ativos. “Existe uma galera super antenada, que aprendeu rápido a ganhar dinheiro com a internet. Agora, com o PIX, podem ser incluídos de maneira mais formal”, diz Monte.
O consultor e professor do Insper ressalta, entretanto, que esse processo pode levar anos, especialmente levando em conta a desigualdade social do país. “Acho que o fim da moeda é mais uma daquelas tendências irreversíveis. Olhando pro futuro, cédula vai ser artigo de museu”, explica.
“Agora, o Brasil tem vários desafios e obstáculos. Estamos aqui em uma bolha falando sobre isso e tem gente que não tem dinheiro para comer. É uma migração que vai acontecer com certeza e a entrada do PIX é um passo importante nisso, mas não é algo que vai acontecer do dia para a noite”, conclui.
Isso também, segundo os especialistas, pode colocar em risco a existência de terminais de saques. Afinal, se será possível pagar e receber tudo pelo celular, para que a existência de caixas eletrônicos? Responsável pela operação do Banco24Horas, uma das principais viabilizadoras de saques de papel moeda no país, e que tem os maiores bancos do país entre os seus sócios, não quis comentar o assunto nessa reportagem.
Open banking
Outra transformação ainda mais profunda proporcionada pelo PIX, na visão dos especialistas, é a consolidação do open banking, que funciona como uma liberação para terceiros criarem aplicações em torno das instituições financeiras. Ou seja, desta maneira, terceiros podem começar a criar produtos de maior valor agregado, como novas maneiras de organizar e investir o dinheiro dos clientes, com os dados financeiros dos usuários.
Com a possibilidade de criar os próprios meios de pagamento, empresas de varejo, transporte e até mesmo da área da saúde, devem começar a eliminar intermediários e facilitar transações dentro de sistemas unificados.
“O open banking vai horizontalizar todo o sistema financeiro. Assim como o varejo oferece crédito, isso pode ser uma tendência para outras áreas. E o BC tem sido muito organizado nesse processo”, afirma o diretor de Inovação da Sinqia. Aliás, além do tradicional modelo de fornecimento de crédito via carnês nas redes varejistas, as empresas do setor vão poder funcionar como intermediárias.
Há poucas semanas, o presidente do BC, Roberto Campos Neto, anunciou que o novo sistema de pagamentos vai permitir o serviço de saque de dinheiro em espécie por meio da rede varejista. Sem dar mais detalhes, ele informou que as regras e detalhes do produto serão apresentados pelo Banco Central na próxima reunião do Fórum Pagamentos Instantâneos (PI), em agosto.
Guerra das maquininhas
Quem pode sair perdendo nesse cenário, são as adquirentes, ou as maquininhas de cartão, que hoje levam boa fatia do valor transacionado com as taxas de operação. Na opinião do professor do Insper, grandes bancos tradicionais e empresas como Cielo, Rede e GetNet precisam se reorganizar rapidamente e atualizar o modelo de negócios se quiserem sobreviver no longo prazo. Seria, então, o fim da guerra das maquininhas?
“Existe uma espécie de ‘fintechização’ do mundo. Quando essa lógica de pagamentos deixar de ser exclusividade de bancos, todo mundo vai querer desenvolver as próprias plataformas. Desde redes de postos de combustível ao setor de saúde. As empresas vão economizar recursos dessa forma, então a tendência é todo mundo virar banco”, analisa o consultor e professor do Insper, Renato Mendes.
Mas boa parte dos analistas do mercado financeiro discorda e defende que métodos de pagamento via QR code, uma das ferramentas do PIX, já estão sendo incorporados pelas instituições tradicionais.
“O mercado vai se ajustar, porque o cartão tem o fator crédito, é um recurso que dá limite, então, continua tendo uma vantagem competitiva. Não existe essa assimetria de que o PIX vai combater a indústria de cartões, pelo contrário, traz uma nova dinâmica que pode inclusive ajudar”, diz Moreira, o diretor executivo de Open Banking e Operações do Banco Original.