O governo Jair Bolsonaro estabeleceu como diretriz, em uma estratégia nacional de longo prazo, a defesa da vida “desde a concepção” e dos “direitos do nascituro”. Defensores de direitos reprodutivos consideram a ação mais um passo na ofensiva do presidente contra as possibilidades de interrupção de gravidez previstas em lei.
As referências constam na Estratégia Federal de Desenvolvimento para o Brasil no período de 2020 a 2031, publicada nesta terça-feira (27) no Diário Oficial da União.
Trata-se de um decreto que estabelece um planejamento de longo prazo para o qual os diferentes órgãos do governo deverão considerar “os cenários macroeconômicos, as diretrizes, os desafios, as orientações, os índices-chave e as metas-alvo estabelecidos”.
No item “efetivar os direitos humanos fundamentais e a cidadania”, a estratégia traz a seguinte orientação: “promover o direito à vida, desde a concepção até a morte natural, observando os direitos do nascituro, por meio de políticas de paternidade responsável, planejamento familiar e atenção às gestantes”.
Os termos “direito à vida desde a concepção” e “direitos do nascituro” são frequentemente utilizados por ativistas que querem restringir as possibilidades previstas em lei para o aborto.
Segundo Gabriela Rondon, advogada do Anis (Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero), o termo nascituro consta no Código Civil, mas é comumente utilizado por grupos opositores do aborto, inclusive das exceções previstas na lei brasileira. Segundo ela, o objetivo do uso do termo é “tentar conferir determinados direitos fundamentais ao embrião em conflito com os da gestante”.
No Brasil, a interrupção de gravidez não é autorizada a não ser nos casos de estupro, risco de vida para a gestante e de anencefalia.
Quando foi indicada ministra de Bolsonaro, no final de 2018, Damares Alves (Mulher, Família e Direitos Humanos) disse que o projeto mais importante que estava em tramitação no Congresso Nacional naquele momento era o chamado estatuto do nascituro.
A versão discutida à época restringia os direitos da mulher em relação ao aborto e previa o pagamento de uma pensão para mulheres vítimas de estupro que decidissem manter a gravidez.
A proposta previa que a pensão alimentícia e outros custos do sustento da criança fossem pagos pelo estuprador. Caso ele não fosse identificado, o custeio deveria ser feito pelo poder público, o que levou a proposta a ser apelidada no Congresso de “bolsa estupro”.
O estatuto classificava o nascituro como ser humano concebido, incluindo os “in vitro”, antes da transferência para o útero da mulher.
Embora houvesse críticas ao aborto em relatórios apresentados por deputados sobre o tema, o projeto não citava alterações para a interrupção da gravidez nos casos já garantidos em lei.
Mesmo com as possibilidades de aborto previstos na legislação e em entendimento do STF (Supremo Tribunal Federal), o governo Bolsonaro levou adiante uma série de medidas restritivas que, na visão de especialistas em saúde, reduzem a proteção de mulheres, inclusive as que podem abortar legalmente.
Recentemente, o governo Bolsonaro se aliou aos EUA e alguns dos países mais conservadores do mundo para patrocinar uma declaração política contra o aborto e em defesa da família baseada em casais heterossexuais.
O texto enfatizou que “em nenhum caso o aborto deve ser promovido como método de planejamento familiar” e que “quaisquer medidas ou mudanças relacionadas ao aborto dentro do sistema de saúde só podem ser determinadas em nível nacional ou local de acordo com o processo legislativo nacional”.
Em outra frente, o Ministério da Saúde editou portarias com regras para o atendimento a mulheres que buscam aborto nos casos previstos em lei, o que especialistas e entidades na área de saúde consideraram uma forma de intimidar gestantes que buscam o procedimento.
Após repercussão negativa, trechos polêmicos da norma foram retirados, como a a exigência de que médicos informassem às grávidas a possibilidade de ver o feto em ultrassonografia, mas outros pontos foram mantidos, como a necessidade de que médicos informem a polícia caso atendam mulheres que buscam interromper a gestação em casos de estupro.
Nalida Coelho Monte, coordenadora do núcleo de defesa e promoção dos direitos das mulheres da Defensoria Pública de São Paulo, diz que diretrizes como as editadas nesta terça não têm o poder de impedir o aborto legal, mas servem para “esvaziar” políticas públicas direcionadas à saúde reprodutiva.
“Essa diretriz, assim como as portarias do Ministério da Saúde e sua substituta, servem para que o Executivo esvazie políticas públicas relacionadas à saúde reprodutiva das mulheres. Embora o governo não possa impedir o aborto legal, porque isso demandaria alteração legislativa, ele cria um ambiente de desinformação e aparente insegurança jurídica, que tem efeitos práticos porque dificulta ainda mais o acesso de mulheres aos serviços de aborto legal”, afirma.