Quando era jovem, Stephen Crohn viu seus amigos morrerem, um após o outro e sem que ele pudesse fazer nada, de um mal que não tinha nome.
Quando seu companheiro, um ginasta chamado Jerry Green, adoeceu gravemente em 1978 com uma doença que hoje conhecemos como Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (Aids), Crohn simplesmente concluiu que ele seria o próximo.
Mas, enquanto seu parceiro ia ficando cego e fraco, Crohn permanecia saudável. Ao longo da década seguinte, dezenas de amigos e inclusive outros parceiros teriam um destino semelhante.
Em 1996, o imunologista Bill Paxton, que trabalhava no Aaron Diamond Aids Research Center, em Nova York, estava à procura de homens homossexuais resistentes à infecção, com a intenção de descobrir os motivos por trás dessa resistência.
Quando Paxton tentou infectar os glóbulos brancos de Crohn com HIV, o vírus causador da Aids, em um tubo de ensaio, isso se revelou impossível. A explicação é que Crohn tinha uma mutação genética — que ocorre em apenas 1% da população — que impede o vírus de se prender à superfície dos glóbulos brancos.
Nos dez anos seguintes, os cientistas conseguiram desenvolver um medicamento retroviral, que imita os efeitos dessa mutação no organismo e que transformou os tratamentos da Aids. A droga também se mostrou crucial para ajudar a controlar o vírus em pessoas infectadas.
Crohn morreu em 2013, aos 66 anos, mas sua história deixou um legado que vai muito além do HIV.
Resistência à covid-19
Nas últimas duas décadas, inspirou todo um campo da Medicina, em que os cientistas buscam identificar esses chamados “casos isolados” que, como o de Crohn, são excepcionalmente resistentes ou pouco suscetíveis a uma doença e servem de base para estudos de novos tratamentos.
Como geneticista na Escola de Medicina Icahn, em Nova York, Jason Bobe passou os últimos anos estudando pessoas com traços de resistência incomum a doenças, de problemas cardíacos à doença de Lyme. Assim, quando a primeira onda de covid-19 atingiu o país, seu primeiro instinto foi procurar pessoas resistentes à nova infecção por coronavírus.
“Pensei em Stephen Crohn. Alguém precisava começar a procurar esses casos isolados de (resistência à) covid-19”, diz ele.
A ideia de Bobe era tentar encontrar famílias inteiras, nas quais várias gerações haviam sofrido casos graves de covid-19, mas entre as quais havia pelo menos um indivíduo assintomático. “Ter uma família inteira junta torna muito mais fácil entender os fatores genéticos em jogo, e o que está por trás dessa resistência”, explica.
No passado, a identificação de grupos familiares que atendessem a essas características levaria anos, mas o mundo digital oferece várias maneiras de chegar a essas pessoas. Desde junho de 2020, Bobe tem trabalhado com administradores de grupos de pacientes com covid-19 e familiares no Facebook, como o Survivor Corp, para tentar identificar candidatos.
Também criou uma plataforma na internet em que qualquer paciente com covid-19 assintomático pode preencher um questionário para participar de um estudo de resistência ao vírus, se atender aos requisitos.
Nos próximos meses, Bobe espera replicar a sequência de genomas de pacientes com sinais de resistência à covid-19, para ver se compartilham de alguma mutação que os estaria ajudando a escapar do vírus. Se tiver sucesso, suas descobertas podem servir de base para a criação de medicamentos antivirais capazes de nos proteger da covid-19 e também de futuras epidemias de coronavírus.
E já existem algumas pistas. Os pesquisadores identificaram uma associação entre os grupos sanguíneos do tipo O e Rh negativo a um menor risco de doenças graves. Mas, enquanto os cientistas levantam a hipótese de que certos tipos de sangue podem naturalmente ter anticorpos capazes de reconhecer alguns aspectos do vírus, a natureza precisa dessa relação permanece obscura.
Cientista brasileira investiga a questão
Mas Bobe não é o único cientista tentando descobrir o que torna esses casos isolados de resistência à covid-19 únicos. Mayana Zatz, diretora do Centro de Pesquisas do Genoma Humano da Universidade de São Paulo, identificou cem casais em que uma pessoa foi infectada com covid-19, mas seu parceiro, não.
Sua equipe está agora estudando esses indivíduos na tentativa de identificar os marcadores genéticos dessa resistência. “A ideia é tentar descobrir por que algumas pessoas altamente expostas ao vírus não desenvolvem a covid-19 e também não apresentam anticorpos. Descobrimos que, ao que parece, isso é relativamente comum. Recebemos cerca de 1 mil emails de pessoas dizendo que estavam nessa situação”, explica.
A cientista também analisou o genoma de 12 pessoas com mais de 100 anos que foram apenas levemente afetadas pelo coronavírus, incluindo uma mulher de 114 anos na cidade de Recife, que segundo os registros de Zatz, é a pessoa mais velha a sobreviver à covid-19.
Embora a doença tenha se mostrado especialmente mortal entre os adultos mais velhos, aqueles que conseguiram resistir à infecção e têm mais de 70 anos podem oferecer pistas de novas maneiras de proteger os mais vulneráveis em futuras pandemias.
Embora os casos de resistência excepcional ao vírus tenham chamado a atenção de alguns geneticistas, outros estão mais interessados nos casos atípicos no outro extremo do espectro: aqueles que foram mais afetados do que a média.
Nos últimos meses, estudos com esses pacientes esclareceram por que o Sars-CoV-2, o vírus que causa a covid-19, pode ser tão mortal.
Interrupção do sistema de alarme do corpo
Em meados do ano passado, Qian Zhang chegou para uma consulta odontológica. No meio da revisão, o dentista que a atendia perguntou: “Como é possível que eu tenha ido parar na UTI por causa da covid-19, enquanto minha irmã foi infectada, mas nem notou que estava infectada?”.
Como geneticista que trabalha na Universidade Rockefeller, em Nova York, essa era uma pergunta que Zhang deveria ser capaz de responder com facilidade.
Nos últimos anos, vários cientistas de sua universidade se especializaram em estudar o genoma humano em busca de pistas que respondam por que há pessoas que ficam gravemente doentes com vírus comuns, como da herpes ou da gripe.
“Em todas as doenças infecciosas que analisamos, sempre é possível encontrar casos isolados de pessoas que adoecem gravemente porque apresentam mutações genéticas que as tornam suscetíveis”, diz Zhang.
Quando a pandemia de covid-19 começou, ficou logo claro que os adultos mais velhos, sobretudo aqueles com problemas de saúde subjacentes, eram desproporcionalmente mais afetados, em comparação com a média.
Mas os cientistas da Universidade Rockefeller estavam mais interessados nos casos atípicos de pessoas aparentemente saudáveis na casa dos 30 anos que acabaram na UTI.
Em abril, eles lançaram um projeto de colaboração internacional chamado Covid Human Genetic Effort em parceria com outras universidades e centros médicos na Bélgica, Taiwan e outros países, com a ideia de estudar a genética desses casos. Assim que o projeto começou, Zhang já tinha um suspeito em vista.
Na década de 1960, os cientistas descobriram que nossas células têm um sistema de alarme interno que alerta o resto do corpo quando ele está sendo atacado por um novo vírus. “Quando um vírus entra na célula, a célula infectada produz proteínas chamadas interferons tipo um, que são liberadas para fora da célula”, explica Zhang.
“Todas as células ao redor recebem esse sinal e se dedicam a se preparar para combater aquele vírus. Se a infecção for grave, as células vão produzir interferon suficiente para que chegue à corrente sanguínea e assim todo o corpo saiba que ele está sendo atacado.” Mas, às vezes, há falhas genéticas que fazem com que esse sistema não funcione.
Em 2015, os cientistas da Universidade Rockefeller identificaram mutações em jovens saudáveis que desenvolveram casos graves de pneumonia a partir de uma simples gripe. A mutação fazia com que a resposta do interferon não fosse registrada. “Se o alarme for silenciado, o vírus pode se propagar e infectar muito mais rápido”, diz Zhang.
Vulnerabilidade à covid-19
Aparentemente, isso desempenhou um papel importante em algumas pessoas surpreendentemente vulneráveis à covid-19. Uma série de artigos científicos, publicados em setembro de 2020, comparou 987 dos chamados casos isolados de covid-19 que desenvolveram pneumonia grave, mas tinham menos de 50 anos ou mais de 50 anos sem comorbidades, com pacientes assintomáticos.
Cerca de 3,5% apresentavam uma mutação genética significativa que os impedia de gerar a resposta do interferon tipo um. Outros 10% tinham anticorpos que atuam contra o próprio organismo no sangue, conhecidos como autoanticorpos, que se ligam aos interferons e os “removem” da corrente sanguínea antes que possam alertar o resto do corpo.
De acordo com Ignacio Sanz, especialista em imunologia da Universidade Emory, nos Estados Unidos, isso confirma outras descobertas que sugerem que os autoanticorpos desempenham um papel fundamental nos casos mais graves de covid-19, bloqueando a capacidade do corpo de se defender contra os vírus.
“Há evidências acumuladas de que um percentual significativo de pacientes com doenças graves produz quantidades e tipos incomuns de autoanticorpos”, explica o especialista.
Os cientistas da Universidade Rockefeller agora querem usar essa informação para detectar pessoas que podem ter uma vulnerabilidade invisível à covid-19, além de outros vírus respiratórios, como a gripe.
Zhang explica que qualquer pessoa com uma mutação genética que impeça o bom funcionamento dos interferons pode ser tratada preventivamente, ou até mesmo nos estágios iniciais da infecção. “Desde que fizemos o estudo, tivemos três pacientes em Paris que já sabiam que tinham essas mutações genéticas”, explica.
“Após testarem positivo para covid-19, eles receberam uma injeção de interferon, e os três resultados foram muito bons. Nenhuma doença grave.”
Eles também estão colaborando com bancos de sangue em todo o mundo para tentar identificar a verdadeira prevalência na população em geral de autoanticorpos que atuam contra o interferon tipo um. Se uma porcentagem significativa for encontrada, pode ser desenvolvido um teste para determinar se uma pessoa apresenta, sem saber, um risco muito maior diante de infecções virais.
“Precisamos descobrir quantas pessoas estão por aí com esses autoanticorpos”, diz Zhang. “Porque muitos dos que participaram de nosso estudo pareciam totalmente saudáveis e não haviam tido outros problemas até contrair a covid-19”, acrescenta.
Suscetibilidade dos genes
Mas os autoanticorpos e mutações que bloqueiam diretamente os interferons do tipo um representam apenas 14% de todos esses casos isolados que foram analisados. Para os 86% restantes, os geneticistas acreditam que a vulnerabilidade decorre de uma série de cadeias de interações genéticas, que os afetam de maneiras diferentes quando o vírus ataca.
“Apenas um pequeno número é seriamente infectado porque tem uma mutação em um único gene principal”, diz Alessandra Renieri, professora de genética médica da Universidade de Siena, na Itália. “A maioria dos pacientes segue um modelo mais complexo em que muitos genes cooperam entre si para aumentar a suscetibilidade à covid-19”, acrescenta.
Para entender isso, os cientistas da Universidade de Edimburgo, na Escócia, estudaram os genomas de 2,7 mil pacientes encontrados em unidades de terapia intensiva de todo o Reino Unido e os compararam com voluntários saudáveis.
E descobriram que as pessoas mais vulneráveis à covid-19 têm cinco genes — relacionados à resposta ao interferon e suscetibilidade à inflamação pulmonar — que são notoriamente mais ou menos ativos do que os da população em geral.
“Essa combinação significa que o vírus pode se espalhar mais facilmente pelo corpo, e a pessoa tem mais chances de sofrer danos pulmonares como resultado”, explica Erola Pairo-Castineira, uma das geneticistas que liderou o estudo.
Pairo-Castineira sugere que esse conhecimento mudará os tipos de tratamentos de primeira linha oferecidos aos pacientes em futuras pandemias. Em particular, o baricitinib, um anti-inflamatório usado para tratar a artrite reumatoide, que foi identificado por algoritmos de inteligência artificial como um tratamento eficaz para covid-19, em fevereiro de 2020.
Ele é conhecido por ser eficaz na supressão da atividade de pelo menos um dos genes que levam à inflamação dos pulmões. Em dezembro, um ensaio clínico mostrou que uma combinação de baricitinib e do antiviral remdesivir reduz o tempo de recuperação de pacientes com covid-19.
Pesquisas buscam novas pistas
Os cientistas das universidades de Rockefeller e Edimburgo estão agora buscando conduzir estudos mais amplos com pacientes que se mostraram excepcionalmente suscetíveis à covid-19, para encontrar mais pistas genéticas de por que o vírus pode atacar pessoas aparentemente saudáveis.
Isso também pode explicar por que as pessoas com grupos sanguíneos do tipo A parecem ter um fator de risco mais alto.
O estudo desses casos isolados de covid-19 também fornece perspectivas sobre outros mistérios importantes da pandemia, como por que os homens são consideravelmente mais suscetíveis do que as mulheres. “Esses estudos nos deram várias ideias a esse respeito”, diz Renieri. “Eles nos mostraram o quão importante é a resposta do interferon.”
“Isso é interessante porque, depois da puberdade, os homens apresentam um aumento na testosterona, e a testosterona pode desregular os genes do interferon tipo um. Portanto, para os homens que já têm um defeito nesses genes, significa que eles podem ser muito mais vulneráveis ao vírus”, sugere.
Embora muitas dessas respostas possam chegar tarde demais para fazer uma grande diferença na pandemia atual, entender o que torna as pessoas particularmente resistentes ou vulneráveis salvará muitas vidas em surtos futuros.
Como nos mostraram as epidemias de Sars, H1N1 e ebola dos últimos 20 anos, é inevitável que novos vírus continuem a se espalhar, tornando ainda mais vital o desenvolvimento de novos métodos para identificar aqueles que correm mais risco. E novas maneiras de tratá-los.
Com isso em mente, o estudo de Zatz de idosos resistentes à covid-19 não se concentra apenas no SARS-CoV-2, mas também em outras infecções respiratórias.
Sua equipe está usando células-tronco para converter amostras de sangue desses pacientes centenários em tecido pulmonar, que eles infectam em laboratório com vários outros vírus para ver se as mutações genéticas também oferecem proteção contra essas infecções.
Se isso acontecer, pode abrir caminho para a produção de drogas antivirais inteiramente novas, da mesma forma que o estudo de Stephen Crohn sobre os glóbulos brancos décadas atrás.
“Nosso objetivo é identificar variantes genéticas que oferecem resistência, não apenas à covid-19, mas também a outros vírus ou condições adversas”, diz Zatz. “Se identificarmos variantes de proteção e descobrirmos sua função, podemos abrir novas vias de tratamento.”