Por G1
Quando criança, Débora Garofalo pediu à mãe uma pequena lousa com giz de presente. Com o brinquedo sempre em mãos, passou a dar aulas aos coleguinhas com dificuldade de aprendizado na escola. Hoje, aos 39 anos, a brasileira que, por opção, sempre lecionou em escolas públicas, está entre os 10 melhores professores do mundo.
Garofalo é finalista do Global Teacher Prize 2019, o prêmio internacional mais prestigiado da área da educação. O ganhador será anunciado no dia 24 de março. Ela concorre com professores da Grã-Bretanha, Holanda, Índia, Austrália, Geórgia, Índia, Japão, Argentina, Quênia e EUA.
No dia a dia como professora de tecnologias da escola EMEF Almirante Ary Parreiras, na capital paulista, Garofalo agrega à lousa outros instrumentos para ensinar.
Pelas mãos dela e de seus alunos, que têm entre 6 e 14 anos, o lixo jogado nas ruas das favelas de São Paulo se transforma em soluções para problemas da comunidade. Garrafas pet, vidro, restos de fiação viram filtro de água, semáforo, máquina de sorvete, e até tecnologia de energia renovável para substituir o gato elétrico em casas da favela.
“Coletamos lixo das ruas das comunidades próximas à escola e fizemos um primeiro carrinho movido a balão de ar. Esse carrinho virou febre e, no dia seguinte, tinha criança do lado de fora me esperando com materiais recicláveis querendo fazer o carrinho”, disse Garofalo à BBC News Brasil.
Assim nasceu o projeto “Robótica com Sucata” – que virou referência no Brasil e ganhou a atenção do mundo.
Em quatro anos, mais de 700 kg de lixo foram retirados das ruas pelos estudantes; o resultado da EMEF Almirante Ary Parreiras no Índice de Desenvolvimento de Educação Básica (Ideb), que mede a qualidade do ensino, subiu de 4.2 para 5.2; e alguns alunos de Garofalo já decidiram que querem ser físicos, engenheiros ou programadores.
Em quatro anos, mais de 700 kg de lixo foram retirados das ruas pelos estudantes — Foto: Arquivo pessoal
“Um dos meus primeiros alunos passou agora em física na USP. É um orgulho enorme”, conta a professora, que é formada em Letras e Pedagogia.
Garofalo diz que, se ganhar o prêmio de US$ 1 milhão daquele é considerado o “Nobel da educação”, vai reverter todo o dinheiro na construção de laboratórios de robótica em escolas públicas do país. “E, se eu não ganhar, já fica a lição de que é possível fazer grandes coisas com poucos recursos e que precisamos aprender a inovar”, afirma.
Em entrevista à BBC News Brasil, ela defende que, para gerar entre os jovens interesse em estudar, as escolas precisam “reinventar” a forma como o conteúdo é repassado. Segundo a professora, as novas gerações não aprendem da mesma maneira que as anteriores, de olho no quadro negro.
“A escola precisa ser atrativa e dar sentido prático ao que é ensinado. E os professores devem envolver as crianças na resolução de problemas, torná-las protagonistas do aprendizado. O meu papel é, junto com eles, errar, testar, fazer com que cheguem às conclusões e criem, sem simplesmente entregar a eles as respostas.”
Se ganhar o prêmio, Garofalo diz que vai reverter todo o dinheiro para construção de laboratórios de robótica em escolas públicas do país — Foto: Arquivo pessoa
Crítica do projeto Escola sem Partido, Garofalo defende que a solução para melhorar a qualidade da educação básica no Brasil “não passa por gastar dinheiro público fiscalizando professor em sala de aula”.
“Eu acho essa discussão totalmente infundada. Sou professora há 14 anos e nunca vivenciei isso (doutrinamento). Meu papel é fazer com que meus alunos sejam críticos e reflitam sobre diversos assuntos, sem emitir minha opinião pessoal, mas debatendo diversas vozes e opiniões.”
Veja os principais trechos da entrevista de Garofalo à BBC News Brasil:
BBC News Brasil- Como surgiu a ideia de usar lixo para ensinar robótica?
Débora Garofalo – Quando comecei a dar aula de tecnologia na escola, vi que muitos dos meus alunos não vinham para a escola em dia de chuva por causa da questão do alagamento ocasionada pelo lixo. E eles diziam que o lixo incomodava, gerava ratos, insetos e doenças, como dengue. Isso começou a me causar inquietação e me gerou uma reflexão. Não adianta falar de robótica, programação, animação se eu não envolver essa questão do lixo que, para eles, é tão importante e fundamental.
Eu propus, então, que a gente fosse para a rua e fizesse um percurso. Nesse percurso, era para começarmos a recolher lixo, para ver que tipo de sucata era essa, e tentar reutilizar o material. Criamos, com o que foi coletado, um carrinho movido a balão de ar. E esse primeiro carrinho virou uma febre, porque um começou a contar para o outro.
No dia seguinte, tinha criança do lado de fora me esperando com materiais recicláveis querendo fazer o carrinho também. Aí eu pensei: ‘acho que a gente encontrou o caminho para estruturar um trabalho de robótica com uma intervenção social, para que as crianças possam sensibilizar a própria comunidade e intervir na própria história.’ Aí nasce a proposta de robótica com sucata.
No início do projeto, estudantes criavam brinquedos que sempre quiseram ter e não tinham — Foto: Arquivo pessoal
BBC News Brasil – O que vocês conseguiram criar com sucata desde que o projeto foi criado, há quatro anos?
Débora Garofalo – Foi um processo evolutivo. No começo, a gente já criou avião, barco, robôs, consoles, máquina de sorvete, máquina de refrigerante, helicóptero, baratinha robótica. Eram brinquedos que eles sempre quiseram ter e não tinham. Depois de um tempo, houve uma mudança de olhar deles. Eles perceberam que poderiam intervir em problemas sociais da comunidade.
Temos uma avenida que não tem semáforo, então criamos um semáforo inteligente. Tivemos incêndios dentro da comunidade ocasionados pela questão da irregularidade da energia, então decidimos criar uma casa com energia sustentável, inclusive com temporizador para economia de energia. Temos alunos com necessidades especiais, então fizemos um sensor para as cadeiras deles, para que pudessem ter maior autonomia. Então, a gente vê essa evolução sob outro viés, que é o de realmente atacar os problemas do dia a dia. Eles perceberam que eram capazes de criar soluções com tecnologia, inventividade e criatividade.
BBC News Brasil- Há alunos de escolas públicas que não recebem apoio em casa para estudar, precisam acumular responsabilidades, como cuidar de irmãos mais novos, ou até trabalhar para complementar a renda familiar. Como atrair a atenção dessas crianças para a escola?
Débora Garofalo – A escola precisa ser reinventada, precisa ser atrativa. Doía no começo, porque meus alunos não se achavam capazes. Eles não sentiam que havia perspectiva. No projeto de robótica, senti uma grande diferença nos alunos mais indisciplinados. Eles passaram a ser os que mais se dedicavam a fazer os protótipos. Houve uma mudança de cultura. A gente precisa trazer a tecnologia como propulsora do aprendizado nas escolas. Esses meninos nasceram nessa era da tecnologia e internet. As escolas ainda têm lousa e giz, mas os alunos aprendem de forma diferente.
Ouvir o aluno também é fundamental. O meu trabalho foi construído com base nas vozes deles. A gente sabe que, no mercado hoje, tudo está sendo automatizado. A inteligência artificial já faz parte do nosso dia a dia. Temos sistema de voz no o iPhone, por exemplo. A escola tem que se adaptar a esse novo momento. Não estou exigindo que meus alunos saiam de lá programadores, mas que eles trabalhem na escola o raciocínio lógico, entendam os dados de programação, sejam crítico e reflexivos.
BBC News Brasil – É essencial mostrar que a educação na escola pode solucionar problemas reais e que pode ter efeitos práticos imediatos?
Débora Garofalo – Sim, o aluno se envolve quando sente que pertence. É possível perceber pela voz dos meus alunos que eles estão envolvidos, eles falam com propriedade do que fizeram para solucionar os problemas. Então, envolver essas crianças na resolução de problemas é fundamental para tirá-las da passividade e levá-las ao centro do processo de aprendizagem. Elas viram protagonistas. Meu papel é mediar esse conhecimento. É errar e testar junto com os alunos, e fazer com que eles cheguem às conclusões sem que eu entregue as respostas.
BBC News Brasil – Que dificuldades você vivencia trabalhando em escola pública?
Débora Garofalo – Eu sou fruto da escola pública. E é onde eu acreditava que poderia fazer diferença na vida das crianças, mesmo tendo oportunidade de lecionar em escola particular. Mas a realidade de uma escola pública não é fácil. Hoje atuo numa escola cercada por quatro grandes favelas e, antes, trabalhei em outras escolas públicas. Vemos dificuldade de alimentação dos alunos, dificuldade de os pais estarem presentes no processo de ensino, dificuldade de não ter infraestrutura e recursos para desenvolver um trabalho. É importante que a escola e o professor levem em conta a realidade específica da comunidade onde a escola está inserida.
‘A escola precisa ser atrativa e dar sentido prático ao que é ensinado’, diz Garofalo — Foto: Arquivo pessoal
BBC News Brasil – Quando a gente olha para os países com melhores resultados de ensino, todos têm em comum valorização de seus professores – não só com bons salários, mas também prestígio e oportunidades de crescimento na carreira. Você sente que é valorizada como professora no Brasil?
Débora Garofalo – A situação dos professores não é fácil. Existe uma grande desvalorização docente. Não temos incentivos para ser professor no Brasil. O problema já começa na formação. O professor sai da faculdade despreparado para enfrentar a sala de aula. Não há treinamento prático suficiente nos cursos de pedagogia e licenciatura. O meu curso de magistério foi muito melhor que a faculdade. Eu me tornei professora graças ao magistério, não à universidade, porque lá tinha a possibilidade de enfrentar o chão da escola, diferentemente da faculdade (de letras e pedagogia).
BBC News Brasil – Sobre valorizar o que já existe em sala de aula, o que precisaria ser feito? Falta intercâmbio de informações entre instituições?
Débora Garofalo – A gente ainda encara a escola como uma ilha. Aqui no Brasil funciona assim. A universidade deveria estar dentro da escola pública, a comunidade também. Eu busco muitas parcerias. Fiz um trabalho sobre cyber bullying e trouxe uma defensora pública do núcleo dos direitos das mulheres para falar sobre os problemas envolvidos em compartilhar fotos íntimas de meninas na internet.
Na escola, há muitas crianças que trabalham, então eu fiz um projeto de conscientização sobre trabalho infantil e chamei uma promotora do Ministério do Trabalho para conversar não só com os alunos, mas também com os pais. A gente precisa integrar a escola à sociedade e abrir as portas para fomentar o diálogo.
A sucata já foi transformada em filtro de água, semáforo, máquina de sorvete e até tecnologia de energia renovável para substituir o gato elétrico na favela — Foto: Arquivo pessoal
BBC News Brasil – O contato com robótica despertou em alguns alunos interesse em trabalhar com tecnologia e robótica?
Débora Garofalo – Um aluno que participou da primeira leva do projeto passou agora em física na USP. Ele está em São Carlos e vai seguir nessa área. Ontem meu aluno Richard disse que quer trabalhar com animação em games, porque o curso de tecnologias na escola despertou esse interesse e ele gostou de programação. Tenho várias meninas que querem ser engenheiras nucleares. Essas crianças não tinham perspectiva e, quando você vê um aluno de escola pública passando na USP, é motivo de muito orgulho, principalmente na comunidade em que estão inseridos. Eu sempre falo que não é o lugar que determina quem eles podem ser, são eles próprios.
BBC News Brasil – O Brasil acaba de vivenciar uma tragédia, com dois jovens matando alunos e professores de uma escola pública de Suzano, em SP. Tendo como base sua experiência como professora, você enxerga caminhos para impedir que esse tipo de violência aconteça?
Débora Garofalo – Falta um aparato psicológico nas escolas. As escolas não estão preparadas para lidar com isso hoje em dia. E essa proposta de dar armas aos professores eu acho um absurdo. Não vai resolver nada. Só aumenta o massacre. Nós não somos policiais, nossa arma é nossa voz. A gente precisa é investir em políticas públicas e inserir cuidados sócioemocionais nas escolas.
É fundamental uma parceria na área da saúde para que haja uma atenção psicológica aos alunos. O crime foi planejado há um ano e meio. A gente não sabe o que ocorreu com esses meninos, mas a gente sabe que algo que pode ser melhor trabalhado nas escolas é a questão sócioemocional.
BBC News Brasil – Um dos principais temas em debate hoje no Brasil, quando se fala em educação, é a proposta Escola Sem Partido, que serviria para evitar um suposto doutrinamento nas escolas. Qual a sua opinião sobre isso?
Débora Garofalo – Eu acho essa discussão totalmente infundada. É um desperdício com dinheiro público usar recursos da educação para fiscalizar professor. Eu sou professora há 14 anos e nunca vivenciei isso (doutrinamento) em sala de aula. As salas de aula são locais de reflexão. Estou lá para fazer com que meus alunos sejam críticos e reflexivos sobre diversos assuntos, sem emitir minha opinião pessoal, mas debatendo diversas vozes e opiniões.
Acho que a gente tem que parar de falar de Escola Sem Partido. Não é só professor que faz a educação. Ele é parte disso, mas toda a sociedade tem responsabilidade e é necessário que todos abracem a sua escola. A única coisa que transforma uma vida é educação e a gente tem que parar com debates infundados e começar a buscar soluções. Temos que investir em alfabetização, em formação dos professores e incluir os professores na elaboração de políticas públicas.
Fonte: https://g1.globo.com/educacao/noticia/2019/03/18/como-professora-brasileira-entre-10-melhores-do-mundo-quer-revolucionar-escola-publica.ghtml?utm_source=facebook&utm_medium=social&utm_campaign=g1&utm_content=post