A imprensa livre precisa de você

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Mais de 350 jornais norte-americanos publicaram, na quinta-feira, editoriais em reação aos ataques que a imprensa vem sofrendo da parte do presidente Donald Trump. A ideia partiu do Boston Globe. Em carta enviada a centenas de publicações americanas, sugeriu que fossem publicados textos com o pensamento de cada órgão, sobre as diatribes do titular da Casa Branca, e suas possíveis consequências. Cada um com suas próprias palavras e pontos de vista. A resposta foi avassaladora, inédita na história, desde que Gutenberg inventou o sistema mecânico e os tipos móveis que instrumentaram a revolução pelos produtos impressos. Isso ocorreu em 1439.

Os jornais começaram a se preocupar com os ataques verbais de Trump, desde a campanha eleitoral para a Casa Branca. Continuam a subir de tom a cada dia. “O inimigo do povo”, “distorcem a democracia”, “escumalha”, “criadores de notícias falsas”, “as pessoas mais desonestas do mundo”. As adjetivações vão num crescendo, a cada verdade que a mídia noticiosa revela, e que incomoda o presidente. O órgão da ONU que defende a liberdade de opinião e de expressão, pelo seu relator alerta que a linguagem inflamatória pode instigar a violência real contra jornalistas. Trump é um conhecido boquirroto.

Também costuma fazer ataques racistas e sexistas. Durante a corrida à Presidência, liderou uma campanha para difamar o primeiro presidente afro-americano, Barack Obama, ao exigir dele a certidão de nascimento para provar se teria realmente nascido nos EUA. Ainda outro dia, referindo-se a uma ex-assessora da Casa Branca, que o havia acusado de usar a gíria “nigga”, que vem de nigger. Ambas as palavras são altamente pejorativas e das mais detestáveis da língua inglesa. Nos EUA é insulto racial. Trump, na sua conta do Twitter, com 54 milhões de seguidores, chamou de “cão”, “louca chorona”, a moça negra a qual deu emprego na Casa Branca e mandou despedir.

Em editorial intitulado “A imprensa livre precisa de você”, o New York Times lamenta que as publicações, já atingidas pela crise econômica do setor, ainda tenham que lidar com as tentativas de desprestígio que o populismo moderno pretende causar aos jornais. Na verdade, uma forma de inibição que se repete no mundo. “E, no entanto, os jornalistas desses jornais continuam fazendo o trabalho duro de perguntar e contar as histórias que, de outra forma, você não ouviria”. O desaparecimento da imprensa livre seria o primeiro passo para qualquer regime corrupto controlar as cidades e o país. Por outro lado, vários dos editoriais reconhecem certa culpa da mídia noticiosa, por exagerar nas reportagens, por interpretar mal os fatos. Repórteres e editores são humanos e cometem erros. Corrigi-los é fundamental. Há jornais que se aproximam muito do poder e, com isso, se distanciam dos leitores. Esse casamento espúrio prejudica a interpretação adequada dos fatos. Mas, completamente diferente é insistir que verdades das quais você não gosta são notícias falsas.

Isso é perigoso para a democracia. Principalmente quando se chama jornalistas de “inimigos do povo”. Como no clássico distópico “1984” de George Orwell, o que os autoritários mais desejam é que deixemos de publicar “as evidências testemunhadas pelos nossos olhos e ouvidos”.

Pior que tudo nesta crise, comenta o espanhol El País, foi a cegueira dos jornais que desprezaram, “durante vários anos, a avalanche digital que vinha em cima de nós e que acabaria por colocar em dúvida a nossa existência”. Mas todos os defeitos imagináveis não são suficientes para esquecer a decisiva função de vigilância que os jornais cumprem em uma sociedade democrática. Sem eles, simplesmente estaríamos a mercê dos corruptos, dos corruptores e dos manipuladores. Também é evidente que as novas tecnologias também trazem no seu âmago ideias para um novo jornalismo. Haverá de ser ainda mais decisivo na sua função de cão de guarda, a ladrar contra as mazelas do sistema.

A avalanche de editoriais da imprensa norte-americana deixa uma lição do quanto se teme pela continuidade de uma instituição fundamental. Não só dos grandes produtos impressos. Também, e principalmente, dos pequenos e médios, pela ação capilar exercida na defesa de um comportamento ético na política. O apelo no final do texto do NYT vem bem a propósito. “Se você ainda não fez, por favor, assine os jornais da sua região. Elogie-os quando achar que fizeram um bom trabalho e critique quando achar que eles poderiam fazer melhor. Estamos todos juntos nessa”.

O autor é jornalista e articulista do JC.

Fonte: https://m.jcnet.com.br/editorias_noticias.php?codigo=253246?utm_source=Whatsapp&utm_medium=referral&utm_campaign=Share-Whatsapp

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